Ricardo Sousa. Houve um
tempo em que parecia que os anjos da fortuna lhe tinham batido à porta. Regalou-nos
com aquele jeito especial de bater livres. Surpreendeu-nos com aquela marotice
original de bater na mulher. Porém, os atrasos insuportáveis na sua afirmação
comprometeram o plano. A sua carreira acabou por bater de frente contra um muro
de adversidades. Nunca mais recuperou. Era batida a mais. Ricardo acabou por bater
ele próprio no fundo. Mas esteve nele, por breves instantes, toda a esperança
de uma nação na sua demanda pelo novo “Nº 10”. Um pequeno Maradona à escala lusa. Um Rui
Costa menos choramingas. Um Deco mesmo português. Porque o povo gosta destes
senhores altivos do meio-campo ofensivo que definem os jogos com a sua
indolência, os tais que se permitem alhear por largos minutos dos jogos para
depois aparecerem num livre, num passe, numa cotovelada que nunca poderia ser
sancionada pelo árbitro. Porque não é justo. Não é, Aimar? O herói não pode ser
vilão, senão a história não é boa porque não tem heróis. E tem de haver uma moral.
Senão os meninos ficam confusos, choram e depois ninguém se quer levantar da
cama para os fazer calar.
Pois é, pensou-se que o
Ricardo Sousa podia ser este novo herói, mas nicles.
Quando falamos em nº10 que
desapareceram pelas veredas ínvias do deslumbramento, também nos lembramos de
Rui Baião. Rui Baião foi, para quem não sabe, a grande promessa das camadas
jovens benfiquistas no doloroso período pós-Maniche. Ele e o Pepa, com o
Cândido Costa à espreita. O Toy veio depois. Ele e a Sónia Brazão com mais uns
travestis. Esperem, era só mesmo o Toy. Estava a confundir o Benfica com um
programa de entretenimento para as massas, como é possível? Bom, Rui Baião não
fez nada de especial pelas bandas da Luz e nem sequer mereceu as parangonas
prematuras de colossos na apreciação de jogadores, por exemplo d’“A Bola” – que
chegou a jurar que Makukula era a estátua do Eusébio com vida –, o que, desde
logo, lhe augurou dificuldades que efectivamente se viriam a confirmar. Ainda
assim, Rui Baião tinha a pose e a mentalidade petulante que eram necessárias
para um óptimo nº10. Faltou-lhe qualquer coisa para explodir. Quem sabe, um je
ne sais quoi, que é como os franceses dizem “jeito”.
Pode parecer estranho, mas
o ponto alto da carreira de Rui Baião aconteceu mesmo antes desta começar. Ou
seja, Baião ainda era formalmente um júnior. Está agora a fazer 14 anos. Maio
de 1998. Foi tipo um Maio de 68, mas 30 anos depois: a euforia da Expo, a
antecipação de um Campeonato do Mundo no qual não estaríamos presentes, os
últimos dias do escudo enquanto moeda não irrevogavelmente indexada ao euro,
quando tudo o que conhecíamos de séries nacionais de adolescentes era os
“Riscos”. Enfim, tempos moderadamente agitados.
Foi neste contexto que os
Iron Maiden lançaram o seu 11º álbum de originais, apropriadamente intitulado
“Virtual XI”, embarcaram na sua DCLXVIª tournée e visitaram Portugal. A grande
inovação desta tournée (“inovação” e “Iron Maiden” são conceitos que, em
conjunto, devem ser manuseados com extrema precaução) foi a apresentação de um
equipamento de futebol Adidas desenhado por medida para os Iron Maiden; um
fatiota bem catita por sinal, atendendo à matriz de gostos em vigor naqueles
últimos suspiros do séc. XX. Tinha a sua lógica: 11º álbum, “Virtual XI”, onze
tipos equipados, uma equipa de futebol. E então, em Portugal, os Maiden
seleccionaram o Benfica para um jogo-paródia, um evento muito mais social que
desportivo, mas que foi levado a peito por Baião e que ainda hoje ocupa a maior
fatia do seu coração.
Foi um verdadeiro
tira-teimas entre o enfant terrible (que é como os franceses dizem “puto
estúpido”, uma forma que demonstra todo o savoir-faire que os franceses têm para
estas coisas – e “savoir-faire” seria, em bom português, “este tipo de cenas
que se faz bem sem saber porquê”) Rui Baião e a besta Eddie. E o resultado foi
vistoso. Uma batalha de titãs, cheia de golpes sujos, sangue e esgares algures
entre o maléfico e o aparvalhado. O ambiente estava tão de cortar à faca que podia
ter inspirado mais um épico dos Maiden, para colocar no final do alinhamento do
próximo álbum, tipo “Murders In The Stadium Of Light Morgue”. Baião envolveu-se
num tête-à-tête com Eddie pelo domínio do meio-campo. A partida inteira num tu
cá/tu lá bastante bravo. Ora saía um solo do mostrengo, ora saía uma finta
curta do pequeno infante. Ao assistir a esta luta sem tréguas, o público nas
bancadas manifestava-se, com headbangs ou sacudindo bandeiras rubras, sentindo
os níveis de adrenalina a atingir o estado de ebulição. A besta hedionda contra
o príncipe encantado. A técnica da força contra a força da técnica. Homens
grandes contra grandes homens. A beira da estrada contra a Estrada da Beira.
Nunca o futebol foi tão gótico nem o heavy-metal tão redondo.
Talvez esteja a exagerar;
Baião começou no banco e o Eddie foi comprar roupa ao shopping e não jogou. Não
houve armas brancas nem efeitos pirotécnicos. Não se viram tampouco
instrumentos musicais, se exceptuarmos o teclado bocal do Mozer. E nem sequer
foi um jogo muito bem disputado. Mas foi o resultado mais avultado do Benfica
dos últimos 15 anos: 10-1. Deveria estar escrito algures que, de modo a manter
a coerência com a simbologia do nº11, teria de haver 11 golos… e assim foi,
depois de uma primeira parte equilibrada. O Benfica teve sorte. Dos Iron Maiden
só jogou o Steve Harris, ele ainda por cima andava em baixo de forma e os
roadies que os substituíram tinham demasiada bebida no buxo para correrem,
mesmo que fosse para correr atrás do Shéu. Se o Bruce Dickinson estivesse lá,
com certeza que as coisas teriam sido diferentes.
No final, para a
posteridade, fica a mescla entre o bigode típico português e o heavy-metal
britânico, entre as panças de tintol e as barrigas de gin, entre a guedelha
experiente de Harris e o jovem cabelo à tigela de Baião. Baião que, sendo uma
águia, voou na sua carreira como Ícaro: directo ao sol para cair no mar do anonimato.
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