sexta-feira, maio 11, 2012

Voo de Ícaro


Ricardo Sousa. Houve um tempo em que parecia que os anjos da fortuna lhe tinham batido à porta. Regalou-nos com aquele jeito especial de bater livres. Surpreendeu-nos com aquela marotice original de bater na mulher. Porém, os atrasos insuportáveis na sua afirmação comprometeram o plano. A sua carreira acabou por bater de frente contra um muro de adversidades. Nunca mais recuperou. Era batida a mais. Ricardo acabou por bater ele próprio no fundo. Mas esteve nele, por breves instantes, toda a esperança de uma nação na sua demanda pelo novo “Nº 10”. Um pequeno Maradona à escala lusa. Um Rui Costa menos choramingas. Um Deco mesmo português. Porque o povo gosta destes senhores altivos do meio-campo ofensivo que definem os jogos com a sua indolência, os tais que se permitem alhear por largos minutos dos jogos para depois aparecerem num livre, num passe, numa cotovelada que nunca poderia ser sancionada pelo árbitro. Porque não é justo. Não é, Aimar? O herói não pode ser vilão, senão a história não é boa porque não tem heróis. E tem de haver uma moral. Senão os meninos ficam confusos, choram e depois ninguém se quer levantar da cama para os fazer calar.
Pois é, pensou-se que o Ricardo Sousa podia ser este novo herói, mas nicles.

Quando falamos em nº10 que desapareceram pelas veredas ínvias do deslumbramento, também nos lembramos de Rui Baião. Rui Baião foi, para quem não sabe, a grande promessa das camadas jovens benfiquistas no doloroso período pós-Maniche. Ele e o Pepa, com o Cândido Costa à espreita. O Toy veio depois. Ele e a Sónia Brazão com mais uns travestis. Esperem, era só mesmo o Toy. Estava a confundir o Benfica com um programa de entretenimento para as massas, como é possível? Bom, Rui Baião não fez nada de especial pelas bandas da Luz e nem sequer mereceu as parangonas prematuras de colossos na apreciação de jogadores, por exemplo d’“A Bola” – que chegou a jurar que Makukula era a estátua do Eusébio com vida –, o que, desde logo, lhe augurou dificuldades que efectivamente se viriam a confirmar. Ainda assim, Rui Baião tinha a pose e a mentalidade petulante que eram necessárias para um óptimo nº10. Faltou-lhe qualquer coisa para explodir. Quem sabe, um je ne sais quoi, que é como os franceses dizem “jeito”.

Pode parecer estranho, mas o ponto alto da carreira de Rui Baião aconteceu mesmo antes desta começar. Ou seja, Baião ainda era formalmente um júnior. Está agora a fazer 14 anos. Maio de 1998. Foi tipo um Maio de 68, mas 30 anos depois: a euforia da Expo, a antecipação de um Campeonato do Mundo no qual não estaríamos presentes, os últimos dias do escudo enquanto moeda não irrevogavelmente indexada ao euro, quando tudo o que conhecíamos de séries nacionais de adolescentes era os “Riscos”. Enfim, tempos moderadamente agitados.
Foi neste contexto que os Iron Maiden lançaram o seu 11º álbum de originais, apropriadamente intitulado “Virtual XI”, embarcaram na sua DCLXVIª tournée e visitaram Portugal. A grande inovação desta tournée (“inovação” e “Iron Maiden” são conceitos que, em conjunto, devem ser manuseados com extrema precaução) foi a apresentação de um equipamento de futebol Adidas desenhado por medida para os Iron Maiden; um fatiota bem catita por sinal, atendendo à matriz de gostos em vigor naqueles últimos suspiros do séc. XX. Tinha a sua lógica: 11º álbum, “Virtual XI”, onze tipos equipados, uma equipa de futebol. E então, em Portugal, os Maiden seleccionaram o Benfica para um jogo-paródia, um evento muito mais social que desportivo, mas que foi levado a peito por Baião e que ainda hoje ocupa a maior fatia do seu coração.

Foi um verdadeiro tira-teimas entre o enfant terrible (que é como os franceses dizem “puto estúpido”, uma forma que demonstra todo o savoir-faire que os franceses têm para estas coisas – e “savoir-faire” seria, em bom português, “este tipo de cenas que se faz bem sem saber porquê”) Rui Baião e a besta Eddie. E o resultado foi vistoso. Uma batalha de titãs, cheia de golpes sujos, sangue e esgares algures entre o maléfico e o aparvalhado. O ambiente estava tão de cortar à faca que podia ter inspirado mais um épico dos Maiden, para colocar no final do alinhamento do próximo álbum, tipo “Murders In The Stadium Of Light Morgue”. Baião envolveu-se num tête-à-tête com Eddie pelo domínio do meio-campo. A partida inteira num tu cá/tu lá bastante bravo. Ora saía um solo do mostrengo, ora saía uma finta curta do pequeno infante. Ao assistir a esta luta sem tréguas, o público nas bancadas manifestava-se, com headbangs ou sacudindo bandeiras rubras, sentindo os níveis de adrenalina a atingir o estado de ebulição. A besta hedionda contra o príncipe encantado. A técnica da força contra a força da técnica. Homens grandes contra grandes homens. A beira da estrada contra a Estrada da Beira. Nunca o futebol foi tão gótico nem o heavy-metal tão redondo.

Talvez esteja a exagerar; Baião começou no banco e o Eddie foi comprar roupa ao shopping e não jogou. Não houve armas brancas nem efeitos pirotécnicos. Não se viram tampouco instrumentos musicais, se exceptuarmos o teclado bocal do Mozer. E nem sequer foi um jogo muito bem disputado. Mas foi o resultado mais avultado do Benfica dos últimos 15 anos: 10-1. Deveria estar escrito algures que, de modo a manter a coerência com a simbologia do nº11, teria de haver 11 golos… e assim foi, depois de uma primeira parte equilibrada. O Benfica teve sorte. Dos Iron Maiden só jogou o Steve Harris, ele ainda por cima andava em baixo de forma e os roadies que os substituíram tinham demasiada bebida no buxo para correrem, mesmo que fosse para correr atrás do Shéu. Se o Bruce Dickinson estivesse lá, com certeza que as coisas teriam sido diferentes.

No final, para a posteridade, fica a mescla entre o bigode típico português e o heavy-metal britânico, entre as panças de tintol e as barrigas de gin, entre a guedelha experiente de Harris e o jovem cabelo à tigela de Baião. Baião que, sendo uma águia, voou na sua carreira como Ícaro: directo ao sol para cair no mar do anonimato.

Sem comentários:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...